Prazer é pensar: a pintura de Heleno Bernardi, por Paulo Sérgio Duarte - Janaina Torres

São Paulo Brasil

Prazer é pensar: a pintura de Heleno Bernardi, por Paulo Sérgio Duarte

17 de setembro de 2020 | 12:23
O artista Heleno Bernardi, caminhando entre as telas mais recentes de sua produção: prazer e reflexão

Por Paulo Sergio Duarte

O problema na arte é exatamente este: como sentir prazer e, ao mesmo tempo, pensar sobre o que está vendo, e é a isso que somos submetidos diante das telas de Heleno Bernardi. Sua pintura exibe força e tensão junto com a riqueza cromática. Numa mesma tela podemos apreciar essas qualidades associadas às diferentes direções que atuam como bússolas do olhar. Efetivamente, orientam-nos. O olhar é esticado, tem de estar aqui e ali ao mesmo tempo. Percorre a tela em tempos diferentes, às vezes acelera-se, outras vezes caminha devagar. Estamos diante de um rigoroso e esmerado domínio técnico a serviço de uma poética. Essa prática deriva de um pensamento que domina cada passo à luz de um extenso conhecimento da história da arte moderna e contemporânea e mais: de uma reflexão que afirma o que ele quer e não quer na sua pintura.

Se Pollock descobriu o dripping, observando as telas de Janet Sobel, e o expandiu numa escala formidável, Morris Louis e outros artistas incluídos no conhecido capítulo Color Field Painting usaram como coadjuvante de sua prática a força da gravidade diferente do dripping. Pollock executa uma dança estranha sobre a tela com a lata de tinta na mão que cai sobre a tela respondendo aos movimentos do artista. São famosas as fotos e o filme de Hans Namuth como testemunhos dessa ação. Helen Frankenthaler, Robert Motherwell e, sobretudo, Morris Louis manobram a tela para que a tinta se derrame sob relativo controle, dando margem a eventos cromáticos aleatórios na superfície, literalmente como manchas de tinta e seu escorrimento.

É essa técnica que, consciente de sua história, Bernardi utiliza reduzindo ao máximo o acaso que atua apenas de modo marginal. São relativamente finos os derrames. Esse esforço de controle do acaso, inevitável na escolha do escorrimento da mancha de tinta, fortalece muito a possibilidade da trama cromática. Torna-se estreita, às vezes se alarga, mas nunca haverá uma mancha dominante que ocupe a visão. Essa já é uma grande diferença. Ao superpor numerosas camadas, a espessura provoca o olhar, e as oposições das cores culminam no prazer durante a fruição. O cruzamento de direções, às vezes opostas, da horizontal versus a vertical, outras em diagonal, não apenas intensifica o vigor, como sugere para o receptor a movimentação do artista durante a execução de seu trabalho. De repente, descobre-se, em algumas pinturas, a presença mascarada pelas linhas de tinta de figuras regulares como círculos e quadriláteros. Estamos em pleno confronto de duas tradições modernas: a renovação, sob outro prisma, do derrame da tinta, e o abstracionismo geométrico. Não é somente a persistência da modernidade, é uma cena absolutamente contemporânea que provoca a reflexão; o pensamento tem de trabalhar diante dessas pinturas. Temos que observar a escala. As dimensões não são domésticas, em boa parte são públicas, querem ir para a rua, para a parede do museu, o lugar próprio para a vida em sociedade.

Giorgio Agamben nos ensina o que é ser contemporâneo, não importa a época. É contemporâneo aquele que do agora toma distância e, nesse afastamento, não se deixa ofuscar pelo que está claro, mas enxerga as sombras, a própria escuridão. Assim, podemos perceber que aqueles artistas mergulhados na contemporaneidade e suas anedotas – políticas ou sejam elas quais forem – não são contemporâneos porque apenas sublinham o que está claro, evidente. É a distância da qual nos fala Agamben, que Bernardi se apropria em sua arte, seja em suas instalações site-specific com purpurina em lugares degradados, ou em suas pinturas, não nos oferecendo o óbvio. Entretanto, a cidade e a vida estão muito presentes nessas pinturas que vê e transforma em acontecimentos de cores o que nelas está à sombra, no lado pouco visível do atual. Não por acaso, o artista escolheu para a exposição o título Ao peso da sombra.

Não é uma obra em ação, é um trabalho em trânsito, tal como cada um de nós na vida e na cidade se movendo de um lado para o outro, todo dia, até o fim. Transformar isso em pintura não é fácil, mas ele consegue. Heleno Bernardi se inscreve, assim, no que de melhor pode nos oferecer a arte contemporânea: uma poética da reflexão.

Heleno Bernardi, Tudo menos a paisagem I, 2019, Acrílica, esmalte e spray sobre tela, 190×260 cm
Heleno Bernardi, Chão ou impulso I, 2019, Acrílica, esmalte e spray sobre tela, 190×190 cm
Heleno Bernardi, Chão ou impulso II, 2019, Acrílica, esmalte e spray sobre tela, 190×190 cm

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