O artista como "caso de estudo": entrevista com Daniel Jablonski

São Paulo Brasil

O artista como “caso de estudo”: entrevista com Daniel Jablonski

31 de outubro de 2018 | 11:55

O artista Daniel Jablonski, na montagem da instalação As Coisas, em cartaz na Janaina Torres Galeria

Daniel Jablonski vem trilhando uma trajetória singular entre os artistas da novíssima geração da arte brasileira: parte da teoria para a prática artística, a partir de sua própria história pessoal. Em estudos de caso “de si mesmo”, Jablonski flerta com práticas que vão do surrealismo, colagem, instalação, fotografia, performance  e arte conceitual, unindo “coisas mentais” a um raro senso estético e apuro formal. Nesta entrevista, concedida a Leandro Muniz para ao site da Pivô, que abrigou Jablonski em um programa de residência artística para a composição da obra As Coisas (atualmente em exibição na Janaina Torres Galeria), o artista fala sobre sua singular junção de teoria e prática artística.

Leandro Muniz – Você estudou filosofia e já tinha uma atuação acadêmica antes de trabalhar como artista. Ao mesmo tempo em que você produz, também atua como professor. Como se deu a passagem da filosofia para a arte e como sua formação teórica se reflete em sua produção?

Daniel Jablonski – Durante meus anos de formação, sempre tive uma suspeita de que, no fundo, o que interessava na filosofia da arte era a filosofia, não a arte, e isso me incomodava bastante. O Merleau-Ponty, que foi o tema do meu mestrado, talvez seja o melhor exemplo disso: por um lado, ele parece genuinamente interessado na pintura moderna, por outro, está tão preocupado em fazer de Cézanne o exemplo máximo de sua fenomenologia da percepção, que sua teoria se torna incapaz de abarcar outras formas de expressão artística. Não há ali nenhuma palavra sobre as experiências das vanguardas, apenas uma menção pífia à Duchamp. Ou seja, por mais profunda que possa ser enquanto pensamento filosófico, sua análise segue bastante limitada no que diz respeito à arte.

Foi esse uso instrumentalizado da arte pela filosofia que impulsionou minha transição. Primeiro, para o campo da história da arte e, mais tarde, para a produção artística. Mas essa é uma falsa dicotomia, pois minha prática hoje consiste basicamente em ler, escrever e lecionar. A diferença está no fato de que, por meio da linguagem, busco não mais apenas dizer algo mas também fazer algo. Essa é uma ideia que tomei de um filósofo muito distinto, J. L. Austin, que falava sobre o poder “performativo” da linguagem. Minhas obras já não são investigações teóricas, mas teoria aplicada a pontos concretos da minha experiência. Ao invés de apenas considerar a validade de determinadas ideias e conceitos que me interessam, busco testar sua eficácia real — não raro, tomando a mim mesmo como “caso de estudo”.

Você poderia dar um exemplo?

É o que acontece em uma obra como “O sono louco – quem vigia o vigia?”, de 2013-14. Buscava transformar uma anedota pessoal em uma hipótese teórica: E se a dificuldade que tenho de sair da cama pela manhã for, na realidade, uma doença ainda não diagnosticada pela ciência? Tal ideia foi posta à prova por meio de uma experiência caseira: durante um mês, dormi amarrado a um antigo relógio de ponto portátil — desses usados para assegurar que os vigias noturnos realizavam suas rondas em fábricas e galpões no século XIX — para marcar o momento exato do meu despertar. A obra se completou com a elaboração de um ensaio no qual confrontei esses registros de minha atividade noturna com a teoria de Freud sobre o sono. Assim como na psicanálise, a linguagem compareceu ali como uma ferramenta transformadora: não se tratava apenas de descrever um problema mas, ao fazê-lo, dar o primeiro passo na direção de sua resolução.

O sono louco – quem vigia o vigia?, de Daniel Jablonski

Ainda que se concretizem em objetos, imagens ou ações, seus trabalhos são acompanhados por textos. Como você pensa a relação entre texto e imagem na sua prática?

A forma mais simples de encarar esses textos é pensá-los como uma forma de produção de “contexto” para os trabalhos. Não são “textos” no sentido literário do termo, eles buscam apenas oferecer algumas entradas possíveis para o espectador. Pois o essencial nessas obras, a rigor, não é nem a imagem, nem o objeto e nem mesmo o texto, mas sua “narrativa”. Como estas acontecem primeiro em um âmbito estritamente pessoal, doméstico, cotidiano, o que vai a público mais tarde são seus muitos relatos possíveisDaí suas diversas possibilidades materiais e de formalização.

Para guardar aquele mesmo exemplo, “O sono louco” é antes de mais nada a narrativa do auto diagnóstico da doença. Por isso, ele pode ser apresentado como instalação, como uma série de fotografias, ou ainda como uma fala ou um ensaio. Em todos os casos, a pergunta a ser sempre refeita é: qual é a melhor forma de apresentar determinado trabalho em um contexto específico, para um público específico? Devido a essa maleabilidade também do contexto de apresentação, o resultado nunca é final.

Hi Brazil, de Daniel Jablonski, exibida no stand da Janaina Torres Galeria na ArtRio 2018

Além de produzir análises de livros e fazer algumas traduções, você escreveu também sobre a produção de alguns artistas e entrevistou outros. Em que medida esses textos se diferenciam da ideia de crítica de arte?

Assim como os escritos que acompanham minhas obras, a função desses textos que você menciona é oferecer um contexto para o trabalho de pessoas que me interessam. Se você prestar atenção, o meu foco ali são mais as pessoas e menos as obras. Por isso, não se trata tanto de oferecer uma interpretação, mas de apontar para alguns processos pessoais por trás de suas criações. Ainda que algumas dessas estratégias possam esbarrar em questões específicas da crítica de arte, não acredito que cumpram a mesma função. A menos que se entenda por crítica o que fazia, já nos 1920, um escritor como André Breton. Em seu livro “Os passos perdidos”, ele faz uma espécie de crítica de pessoas, com um artigo dedicado a cada um de seus conhecidos.

Penso que minha escrita tenha algo dessa raiz: ela tem por objeto minha dinâmica social, afetiva e política com as pessoas da minha geração. Ao longo dos últimos anos, não fiz tantas colaborações quanto gostaria, talvez por conta desse ranço acadêmico do trabalho solitário na biblioteca… Mas escrever sobre alguém que admiro é também uma forma de propor uma parceria hipotética, de criar uma ponte com o mundo ao redor.

Esse caráter afetivo da escrita, que você comentou,  não pode ser problemático? Essa é também uma questão para a crítica de arte…

 É verdade que boa parte da produção de textos sobre arte hoje reproduz essa lógica “personalista”, mas o faz por um viés estritamente mercadológico, promocional, o que me parece de fato problemático. Por outro lado, o que não me parece problemático é o que tem sido chamado de “crise da crítica”. Ainda que dispersa, acredito que a crítica esteja bem viva. Apenas, ela já não pertence mais à figura do crítico, nem tem como objeto privilegiado a obra de arte. Por exemplo, nos comentários de uma página de compras da internet, é possível ler críticas fantásticas, feitas por qualquer pessoa sobre qualquer coisa.

O debate público sobre arte também já não acontece apenas em colunas de jornais ou nas exposições, mas também em universidades, em cursos livres, em grupos de estudo e em ateliês compartilhados. Já não existem referências centrais, está tudo mais disperso e cada um procura o que lhe interessa. Isso aconteceu também na política, com a seção de comentários dos portais de notícias. O que se encontra ali é, via de regra, pavoroso, mas responde também a essa fragmentação do discurso, que é uma fragmentação da autoridade. Esse é o paradoxo: com essa “democratização” da crítica, há também cada vez mais lugar para aqueles que pregam justamente o fim desse espaço democrático.

Você citou o André Breton anteriormente. Poderia comentar mais sobre seu interesse na literatura surrealista e como essa referência aparece em sua produção?

 DJ – Para mim, o essencial do Surrealismo está em seus textos. Livros como “Nadja, de Breton ou “O camponês de Paris”, de Aragon, são de um gênero difícil de definir: não há ali personagens, nem trama; a rigor, em termos narrativos, nada acontece. Encontramos apenas descrições de episódios anódinos da vida de seus autores, apresentados de um ponto de vista bastante distanciado, como se estivessem narrando acontecimentos históricos objetivos. E o ponto é justamente esse: mostrar que o real já é, por si só, digno de atenção, sem a necessidade de se inventar ou fabular o que quer que seja. Por isso, eles tomam suas próprias vidas como laboratórios para uma vida social, como se tudo que fizessem ou deixassem de fazer fosse um fato digno de nota. Não porque são tais e tais indivíduos, mas, pelo contrário: porque fazem coisas que qualquer um faz, ou poderia fazer, se dedicasse suficiente atenção à sua própria experiência. O surrealismo, em sua faceta menos dogmática — a da dinâmica de grupo — foi um esforço de construção de um imaginário feito de pessoas. Ou, em suas próprias palavras, uma “mitologia moderna, não pessoal, mas radicalmente coletiva.

Da mesma forma, meu interesse é pelo que tenho de mais comum, aquilo que compartilho com outros. Em meus trabalhos, estou sempre à procura deste ponto de inflexão onde minha experiência cotidiana vai além da anedota pessoal e toma um caráter coletivo. Ponto a partir do qual é possível falar de mim mesmo na terceira pessoa (ele), isto é, de um ponto de vista outro que não o da subjetividade (eu). Por exemplo, “Daniel, o que acorda atrasado, que brigou com seus amigos na adolescência, que consulta guias de viagem, que se perde em trâmites burocráticos”, etc. “Daniel” é, nestes casos, apenas um significante vazio colocado em situações comuns com as quais qualquer um pode se identificar com facilidade. Este é o sentido do meu recurso à autobiografia: se com frequência uso a mim mesmo como referente, é apenas como um caso específico de um padrão geral. É nessa permutação entre a experiência do indivíduo e da sociedade como um todo que se encontra um lastro do surrealismo em meu trabalho.

Still Brazil, de Daniel Jablonski: exibida em São Paulo, Rio de Janeiro e Bogotá

Também vejo que, em cada trabalho seu, a relação entre experiências pessoais e sociais é analisada por um ângulo diferente: em “O sono louco” por uma relação com a psicanálise, em “Still Brazil” em relação à identidade nacional, assim por diante.

Os trabalhos apontam para como discursos coletivos determinam identidades pessoais. Cada obra, além de partir de uma anedota pessoal diferente, elege também um desses discursos e tenta se apropriar de seu vocabulário: para falar de férias e consumo, uso outdoors publicitários e guias de turismo, para falar sobre vizinhança e comunidade uso um letreiro neon de escala urbana. No caso de “Still Brazil”trata-se de uma investigação sobre a representação do Brasil no cinema de ficção estrangeiro, na qual reuni quase 900 filmes em que o Brasil é mencionado por razões arbitrárias. A questão em pauta é certamente a da identidade nacional. Mas também, por um efeito de espelhos, quem sou eu, Daniel, como brasileiro, visto pelos olhos dos outros. Essas questões têm de ser sempre formuladas do interior da linguagem que está sendo discutida. Nesse caso, a obra toma a forma de uma instalação cujas partes replicam as diferentes camadas de um filme: still, imagem em movimento, créditos, som, etc. “Still Brazil” foi pensado como um grande filme, mas voluntariamente congelado no tempo: para que se pudesse olhar não só para a narrativa, mas para aquilo que a sustenta: o trabalho da edição, de ideias, textos e imagens.

Entrevista publicada no site da Pivô (leia aqui)

AS COISAS

Exposição individual de Daniel Jablonski
Abertura: 17 de outubro, das 19 às 22h
Em cartaz de 17 de outubro a 15 de dezembro de 2018
Seg a Sex, das 10h às 19h; Sáb 11h às 15h
Entrada franca

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