Heleno Bernardi: o diálogo e o embate entre o corpo e a cidade - Janaina Torres

São Paulo Brasil

Heleno Bernardi: o diálogo e o embate entre o corpo e a cidade

20 de janeiro de 2018 | 16:13

Intervenção Magma, Morro da Conceição, Rio de Janeiro (foto: Wilson Oliveira)

Ao cobrir com duas toneladas de purpurina um “estorvo urbano”, como as ruínas do antigo Cassino da Urca, no Rio de Janeiro, o artista Heleno Bernardi expande as possibilidades de intervenções site specific e o potencial  de envolvimento da sua arte. A saber: o corpo-a-corpo constante com o espectador, seja individual, seja coletivo. Nesta entrevista, concedida a Renato Rezende, curador da intervenção na Urca, que integra o catálogo da intervenção Cassino, Bernardi elabora as questões subjacentes à sua obra, com destaque para as intervenções urbanas.

Renato Rezende: Qual a natureza do seu trabalho? Cassino não parece se adequar perfeitamente a nenhuma das categorias assumidas pela arte contemporânea a partir da expansão do conceito de escultura, como intervenção urbana ou site specific. Cassino parece brotar quase organicamente do antigo Cassino da Urca, ao contrário da natureza mais conceitual de um site specific. Ao mesmo tempo, não se realiza exatamente num espaço público…

Heleno Bernardi: Apesar de ser uma intervenção em um ambiente fechado, Cassino lida com questões fortemente ligadas à cidade, usando este prédio como suporte. O edifício passou por usos tão diversos, transformações arquitetônicas e períodos ociosos que ele mesmo tem uma aura de obra em progresso. O fato de um de seus blocos ser construído sobre a areia da praia e estar ligado ao outro bloco por um terraço que atravessa por cima da rua demonstra o poder que o capital e a política exerceram, tornando-o desde sempre uma intervenção na paisagem e no traçado urbano. Como cassino, foi um ambiente certamente elitista e que gera curiosidade até hoje sobre o que acontecia lá dentro. Já como sede de emissora de TV, o que se passava lá dentro era para ser transmitido para o grande público. Nas décadas em que ficou fechado, se deteriorando, foi um estorvo urbano. Mas, quando da chegada do IED, sofreu oposição de parte da população do bairro. Sua resistência é emblemática, embora seu abandono por décadas também o seja. Ao mesmo tempo que a recuperação do edifício é necessária, há histórias, afetividade, lendas e certa nostalgia embutidas na sua própria falência. Creio que não dá para pensar sobre esta intervenção sem considerar a intrincada relação do edifício com a cidade. Assim, eu não me oporia se classificassem o trabalho como intervenção urbana.

Intervenção Cassino, no antigo Cassino da Urca, Rio de Janeiro (foto: Beto Felício)

Cassino de certa forma fecha uma série de trabalhos realizados por você em espaços arquitetônicos e que usam a purpurina como material principal, denominada Magma. Como essa série foi concebida e construída?

O que me despertou para o uso da purpurina como material de trabalho foi o fato de deixar rastros. É praticamente sinônimo visual de carnaval e sua presença já é sinal de diversão. A purpurina se torna ainda uma espécie de objeto de resistência quando encontramos, dias depois de seu uso, uma partícula num canto da casa ou sobre a pele, como se ela não se rendesse à realidade e continuasse em estado de folia. Para fazer emergir essa resistência me ocorreram procedimentos que não se ligassem diretamente a seu uso comum. Como ela é utilizada quase sempre em pequena quantidade, mexer nesta relação me pareceu um caminho pois, quando se altera a escala de um objeto ou de seu uso, outras questões aparecem. A coisa começou a tomar forma quando, em 2006, fui convidado para participar do festival Rio Cena Contemporânea, na estação de trem da Leopoldina. Ao visitar o local, me deparei com trens enferrujados sobre os trilhos e ao ar livre. Minha proposta de trabalho era colar purpurina sobre uma das composições, cobrindo-a totalmente. Eu estava interessado em alterar a percepção de peso através da fragilidade e do espelhamento da purpurina. Depois de discutir a ideia com os curadores Luisa Duarte e Sérgio Martins, o projeto precisou ser apresentado ao órgão público responsável pela administração da estação, pois não seria possível remover a purpurina após a aplicação. Esta certamente sairia com o tempo, mas o trabalho não foi autorizado pelo órgão. Realizei um outro projeto, mas guardei a ideia inicial. Algum tempo depois, eu descobri um casarão desmoronado no Morro da Conceição, e então a ideia de cobrir aqueles destroços com purpurina me pareceu fazer sentido. Naquele momento, eu não sabia como executar tal tarefa, principalmente porque o acesso ao desmoronamento era difícil. Fui então procurar alguma situação semelhante, mas que fosse de mais fácil aproximação, e acabei encontrando um posto de gasolina demolido numa rua da Tijuca. Funcionou. Em 2008, fui convidado pelo curador Rafael Cardoso para um projeto de intervenções no Morro da Conceição. O casarão demolido ainda estava lá e, com mais estrutura e já tendo a experiência anterior, pude realizar o trabalho. O poeta Paulo Azeredo batizou estas intervenções de Magma, mas invertendo o sentido, pois não se referia a cristalizar a vida, como uma lava de vulcão, e sim ao que havia de morte e putrefato nestes escombros.

Intervenção Magma, Tijuca (foto: Roberta Barros)

Mais do que “fossilizar” ou de alguma forma enobrecer ou chamar a atenção para uma situação de caos efêmero, Cassino parece revelar uma potência implícita, mas escondida, de um objeto esquecido ou abandonado, de uma ruína. Ao acender uma espécie de pulsão inerente a um objeto do passado, ativando suas sobredeterminações históricas, o artista atua como uma espécie de arqueólogo. Como você vê seu papel como artista?

Talvez meu trabalho esteja mais próximo da invenção do que da descoberta. E digo isso sem sugerir juízo de valor sobre estas direções. Mas essa relação se inverte um pouco nas intervenções sobre ruínas. Há nelas um procedimento deliberado, que é o de lançar a purpurina sobre locais demolidos, em escombros e similares. Mas a escolha destes locais passa pela procura e também pelo acaso. Desde a última intervenção, em 2008, levei quase dez anos para realizar esta agora. Embora o procedimento seja o mesmo, as motivações são bastante específicas, e procuro entender isso para realizar os trabalhos. A intervenção no Cassino começou a ser pensada em 2012, e foram necessários cinco anos de envolvimento para entender e descobrir como deveria ser minha ação neste espaço, de forma que revelasse pulsações contidas e ao mesmo tempo acrescentasse uma camada poética. Neste sentido, a ideia do artista arqueólogo é uma boa hipótese.

Embora bastante informado por uma tradição conceitual e politizada, seu trabalho engaja de maneira bastante potente o corpo. Ao construir Cassino, você fez questão de trabalhar duro, evitando facilidades técnicas que o privariam de um corpo a corpo com a matéria. Seu trabalho parece dialogar sempre com a cidade, com esse corpo maior que todos nós habitamos, mas de uma maneira propositiva, até mesmo otimista, lutando com a cidade de igual para igual. A cidade é uma fonte de inspiração?

Me interessa pensar na capacidade que temos de enfrentá-la a partir da própria fisicalidade que ela impõe. Se quero propor obras que, enquanto intervenções urbanas, estão promovendo um diálogo e embate entre corpo e cidade, estão falando de ocupação, de arquitetura, da passagem do tempo, acho que a própria realização precisa passar por este empenho. Aqui no Cassino poderíamos ter feito a aplicação da pintura e da purpurina de forma mais automatizada. Mas para interferir num espaço que levou anos para se tornar ruína é preciso algum tempo, algum esforço, físico mesmo, para ser um trabalho justo.

Elaborando um pouco mais a questão de tradição, seu trajeto é bastante singular, dialogando com um pensamento sofisticado que caracterizou a arte dos anos 1970 e, ao mesmo tempo, refinando a gestualidade dos principais expoentes da geração 80, com a presença do corpo na sua obra. Como você pensa essa singularidade do seu trabalho?

Minha formação foi um tanto entrecortada e, na prática, comecei a me dedicar à arte e a produzir no início dos anos 2000. Mas reconheço um sopro vindo dos anos 1970. Por outro lado, há questões e práticas do agora que me interessam, pois passam por relações do corpo com a cidade, e estas questões estão explodindo fora da arte, como a ocupação de espaços ociosos, um urbanismo mais afetivo, aceitação de uma visualidade mais suja, espaços coletivos etc. Acho que olhar para estas questões em meio a uma cidade conturbada e enfrentá-las com proposições, costura de alguma forma minha produção, que passa por meios distintos, como intervenções, pintura e fotografia. Entretanto, não tenho uma troca estabelecida com um grupo específico de artistas para que eu possa me identificar como parte de uma geração.

Mais sobre Heleno Bernardi

Página do artista (Janaina Torres Galeria)

Heleno Bernardi (site oficial)

Exposição Heleno Bernardi (Janaina Torres Galeria)

 

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