Pedro Moraleida: Faça você mesmo sua Capela Sistina, por Augusto Nunes-Filho - Janaina Torres

São Paulo Brasil

Pedro Moraleida: Faça você mesmo sua Capela Sistina, por Augusto Nunes-Filho

29 de janeiro de 2018 | 14:55

Pedro Moraleida, Série Madonas, tinta automotiva s/ placa de alumínio

Por Augusto Nunes-Filho *

No curto intervalo de duração de sua atividade artística, Pedro Moraleida Bernardes dedicou-se ao exercício diuturno, intenso e pleno de uma corrosiva, irreverente e determinada iconoclastia. O desmesurado dessa produção atinge tal dimensão que é impossível não vislumbrar nela uma quase imperativa compulsão a exigir sempre, e mais, o melhor dele. Moraleida elegeu alguns temas como objeto e alvo principal. A complexidade dos questionamentos sobre religião. O intricado das relações entre poder, política e ideologia. As conexões dos fundamentos do saber, da ciência e da filosofia. As múltiplas formas de expressão da sexualidade, mirando condutas, hábitos e costumes historicamente consolidados na sociedade.

A dissonante erudição do jovem artista o levou, já no início e a princípio, a uma firme tomada de posição estética. Rigor e determinação são combustíveis que alimentam uma atividade constante, possibilitando-lhe desenvoltura na livre circulação por campos tão díspares. O ecletismo que poderia até sugerir alguma superficialidade aos menos avisados, ou aos mais exigentes, aprofunda-se com precisão em incursões que contemplam temas, épocas e pensadores, de cientistas e lógicos da modernidade a filósofos da antiguidade grega, de Baudelaire a Pessoa, de Freud a Lacan, de Bispo do Rosário a Basquiat, de Pasolini a Fassbinder, de Foucault a Deleuze, ou Nietsche. O interesse de Moraleida pela própria produção do conhecimento, seja ele ciência, filosofia, psicanálise, poesia, artes visuais ou a própria história, acaba por compor uma obra composta por curioso amálgama de textos, imagens, símbolos, ícones, numa surpreendente reinvenção.

Pedro Moraleida, Série Faça você mesmo sua capela sistina, Sub-série Germânica, Ich will doch nur dass ihr mich liebt!!! (Eu só quero que você me ame!!!), acrílica sobre tecido e papel – 5,80X2,24m

Nem mesmo a ardilosa tessitura do seu próprio aparato conceitual é poupado pelas incisivas investidas do artista. Os nomes de algumas séries destilam de uma cortante ironia a um fino humor, antecipando os conteúdos de sua imagética e funcionando também como senhas reveladoras do acesso ao seu trabalho. Homens ou mulheres, casais, santos ou madonas, animais, paisagens ou alfabetos compõem cenas que desconcertam, emocionam, impactam, instigam, subvertem… Pedro Moraleida se empresta como uma quase máquina a serviço da arte provocando furos no imaginário coletivo com uma produção em avalanche que provoca impensadas reflexões sobre conceitos ou preconceitos há muito cristalizados, ou, sobre estereotipias ou clichês internalizados no seio da sociedade. O proposital bombardeio de informações, conceitos, juízos, questionamentos atingem o espectador, mesmo à sua revelia, restando-lhe apenas se deixar ver (n)a obra em meio a contemplação e espanto.

Sobre a pedra do conhecimento e sob a égide de uma ética subjetiva particular erige-se a obra de Pedro Moraleida, escrita e inscrita em seu nome próprio. Em fragmentações, escansões, citações, composições, recomposições, mantém-se constância e ritmo impressionantes, seja na quantidade de suportes ou obras, seja na qualidade de conteúdo e forma. A formulação de uma estética, de um conceito e de uma ética singulares, orgânicos e articulados demarcam uma obra ímpar que impõe seu peso e valor no cenário da arte contemporânea, mesmo produzida em tão curto espaço de tempo.

Muito cedo um estilo se impõe a Pedro Moraleida. Ele se expressa na justa coesão entre o gesto executado, a imagem criada e o conteúdo manifesto. A coerência se explicita na definição do traço ou na intensidade do gesto, na execução da pincelada ou no ritmo da composição, na escolha da paleta – que privilegia, sobremaneira, cores primárias – ou na escolha dos suportes. Tais elementos são articulados em sintonia e afinação com rigorosos aspectos conceituais, estéticos e éticos que configuram, também, ingredientes indispensáveis não apenas à construção de um estilo mas, sobretudo, na sua sustentação. Sua obra não comporta a decantada ‘distância entre intenção e gesto’ sugerida pelo poeta uma vez que nela se anula a separação entre imagem e dito revelando-se apenas a crueza de uma obra que (se) revela (a)o olhar.

O gesto de Moraleida prescinde de retoques: é preciso, direto, assertivo e assertivo. Sem rodeios, seca, objetiva, suja. Características atribuídas à arte bruta também podem ser vinculadas ao trabalho de Moraleida. Ele provoca, ainda, um deslocamento no próprio conceito de arte bruta ao incidir seu foco não mais sobre o artista, mas sobre a própria obra de arte. Esse reenquadramento confere mais consistência e coerência à obra do jovem artista; ao invés do segregado ou excluído social confinado em instituições totalitárias, ou do grafiteiro ocupante do espaço urbano, o jovem desenvolve um trabalho (no seio da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais) que dialoga em fina sintonia com Artur Bispo do Rosário ou Jean-Michel Basquiat.

Ao invés de manifestações produzidas no isolamento social ou de eclosões oriundas da periferia urbana, o estudante sustenta com firmeza um estilo pouco em voga no ambiente acadêmico da época. Moraleida elege a figuração no desenho e na pintura como referência maior, conferindo respaldo conceitual a uma produção identificada às manifestações do inconsciente a céu aberto. A obra de Pedro Moraleida aponta, por seu lado, com outras modalidades de surgimento do real que não se circunscrevem ao curto-circuito ao qual estão habituadas leituras e interpretações.

Iconoclastia, obstinação, vigor configuram o estilo ímpar de Pedro Moraleida inscrevendo sua obra peculiar no campo da arte contemporânea. Filho de intelectuais da classe média mineira, o jovem teve formação humanística diferenciada que o capacitou, inclusive, ao primeiro lugar no vestibular da Escola de Belas Artes. Sua obra atinge a maioridade no mesmo ano em que ele completaria 40

anos de idade. No curto período de produção, bruscamente interrompida pela morte precoce, Moraleida deixa como legado uma obra potente digna de destaque no cenário artístico. Tais circunstâncias conduziriam o trabalho de Moraleida para ser assimilado como uma obra fechada. Uma nova reviravolta conceitual se instala, porém, nesse ponto. A forma como se instalou o reconhecimento de sua obra ao longo desses 18 anos não condiz com a noção de obra fechada.

Os acontecimentos recolocam seu trabalho como uma obra em processo, aberta, viva, provocando agora impactos talvez bem mais relevantes do que na época de suas primeiras mostras. A mobilização de setores mais conservadores ou reacionários da sociedade para proibir a exposição

de Moraleida no Palácio das Artes é fato inconteste da potência de sua obra. É o próprio processo histórico que se encarrega, assim, paradoxalmente, de reconfigurar a inserção e o lugar da obra de Pedro Moraleida no cenário de vanguarda da arte contemporânea.

A Capela Sistina do Vaticano ocupa lugar diferenciado entre instituições culturais do mundo. A força de sua representação no imaginário da sociedade ocidental lhe confere relevância quando comparada às demais. É justo sobre ela que recai o foco do artista com o convite Faça você mesmo sua Capela Sistina, convocando cada um a construir seu templo particular. O próprio artista atende ao seu convite e cumpre a parte que lhe cabe. Também a Fundação Clóvis Salgado aceita o desafio e assume a tarefa inédita de construir sua Capela Sistina.

A empreitada se coloca como o grande diferencial desta para as outras exposições de Pedro Moraleida realizadas ao longo desses anos, tenham elas acontecido em Oslo ou Lyon, Paris, Dubai ou Montreal, São Paulo ou Belo Horizonte.

* Texto de apresentação do catálogo da exposição Faça Você Mesmo Sua Capela Sistina. Augusto Nunes-Filho é curador da mostra.

Mais sobre Pedro Moraleida

Site do artista (em flash)

Enciclopédia Itaú Cultural

Página do artista (Janaina Torres Galeria)

Leia Também
EXPOSIÇÕES & VIEWING ROOMS

ENTES

As Maneiras Plurais de Existir

Êxtase

Giulia Bianchi, Mirela Cabral e Paula Scavazzini

Entroncamento

Luciana Magno, Paula Juchem e Pedro David

Nós usamos cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar a sua experiência em nossos serviços. Ao utilizar nossos serviços, você concorda com tal monitoramento.

Aceitar