Da Natureza das Coisas: a cerâmica na construção do tridimensional brasileiro - Janaina Torres

São Paulo Brasil

Da Natureza das Coisas: a cerâmica na construção do tridimensional brasileiro

5 de fevereiro de 2021 | 18:22
Galo, de Paula Juchem

Paula Juchem, Galo (2020), escultura em cerâmica, 54 x ø17cm (detalhe)

Esculturas de Paula Juchem e fotografias de Andrey Zignnatto refletem sobre o papel da cerâmica na arte 

Por Cadu Gonçalves * 

Falar da produção da cerâmica é também falar do desenvolvimento do ser humano e da história da humanidade, nos campos factual, arqueológico e ritualístico. As primeiras peças em argila são datadas de aproximadamente 26. 000 a.C; já o seu estado rígido em cerâmica data de aproximadamente 10.000 a. C. Muitos desses vestígios foram encontrados nos anos 1920, no sítio arqueológico de Dolní Vestonice (República Tcheca), mas também estão presentes em sítios arqueológicos na América do Sul, como o da Pedra Pintada em Roraima, além da Oceania e África.

Dentre esses achados, estão peças de pequeno formato, como as Vênus, símbolo da fartura e fertilidade e, posteriormente, com o domínio humano sobre o fogo, encontramos vasos e recipientes. Em algum momento de nossa história, a argila e o barro ganham as formas de tigelas e ânforas, facilitando a ingestão de caldos e o armazenamento da água. O desenvolvimento de nossa alimentação passa pela cerâmica.

Estas peças carregam em si um sofisticado processo de queima, pigmentação, modelagem e adornos, onde encontramos características de diversos de nossos antepassados. Cada núcleo da humanidade irá criar fornos de queima muito específicos, seja em buracos no chão ou em cupinzeiros, como diversos povos indígenas no Brasil ou o raku, desenvolvido no século XVI, no Japão.

Cerâmica da tradicão Itarare-Taquara

Cerâmica da tradição Itarare-Taquara encontrada na casa subterrânea de Itapeva-São Paulo

Picasso: influência na Europa e no mundo

Dentro deste rico panorama, as artes também não se verão livres da prática da cerâmica e muitos artistas irão revisitar tradições técnicas e imagéticas para a criação de suas obras. Porém, é curioso pensarmos que muitas destas produções serão simplesmente ocultadas pela histórica da arte branca e europeia, sendo um exemplo a coleção de cerâmicas de Pablo Picasso produzidas entre 1947 e 1965, que serão trazidas ao conhecimento público no final do século XX. Este ocultamento está, portanto, em linha com a percepção da crítica de arte de que a arte aplicada seria algo “menor” e de fazer primitivo, até mesmo diminuindo o valor artístico da cerâmica produzida no próprio continente europeu no decorrer dos séculos. Trata-se de uma linha de raciocínio que afirma que “[…] só eram consideradas Artes Maiores aquelas produzidas em determinados materiais e suportes, como a pintura, escultura e arquitetura”. (GARCIA, 2018. p. 55).

Picasso, por sua vez, constrói peças com muitas referências à cultura mediterrânea. Como registra a pesquisadora Simone Garcia, em sua dissertação “A cerâmica de Pablo Picasso: A antiguidade mediterrânea revisitada” (2018): “[…] Picasso projetou muitas obras artísticas em cerâmica, cooperação que influenciaria artesãos e artistas da Europa e do mundo. Assim aconteceu com Marc Chagall, que se apropriou da cerâmica regional de Antibes para produzir as suas cerâmicas também em Madoura, influenciado pelo repentino e duradouro interesse de Picasso na cerâmica“. (GARCIA, 2018 p. 78).

Cerâmica de Pablo Picasso: influência sobre artesãos e artistas de todo o mundo

Madoura foi a olaria na cidade de Villauris (França), em que Picasso produziria todas as suas peças e a cooperação em questão seria a frutífera aproximação com a criadora da olaria, Suzanne Raimé, ceramista com formação inicial na produção e design de moda, que foi a grande responsável pelo aperfeiçoamento técnico e inspiração do artista espanhol.

Caráter comunitário

Além da ocultação dessa parte da história da arte, há também uma não-reflexão sobre o caráter comunitário da produção da cerâmica, o conhecimento compartilhado que reconecta o/a artista, artesão e outros produtores ao seu saber mais inicial, originário. Esse fator se faz presente, por exemplo, na utilização da argila em Xê-Rapó, de Andrey Zignnatto: políptico fotográfico que registra a ação do artista em amassar e enterrar um tijolo sob um buraco na terra roxa. Um ato de devolução e compensação material do objeto e da cultura.

Vista da exposição Da Natureza das Coisas, com obras de Andrey Zignnatto (fotografia) e Paula Juchem (cerâmicas), na Janaina Torres Galeria

Em esculturas como Restinga Seca e Xique-xique, de Paula Juchem, há uma estrutura que desafia a fragilidade do material em peças verticais, quase empilhadas. As peças de Juchem mesclam um olhar à natureza e um repertório particular e singular, em uma hibridização entre formas orgânicas que nos remetem à crustáceos, vegetações brasileiras, animais e formas nas quais nosso olhar estranha por reconhecer, de alguma maneira, a estrutura de um vaso (que se transforma, por sua vez, em um bicho, quando circulamos em volta do trabalho).

Cerâmica de Paula Juchem

Paula Juchem, Restinga Seca, 2020, escultura em cerâmica, 67 x ø25 cm

Ao percorrer os trabalhos de Da Natureza das Coisas, exposição que reúne trabalhos de Paula e Andrey, e perceber corporalmente os processos de criação dos dois artistas, nos deparamos também com mais uma página em construção de um pensamento do tridimensional brasileiro, que, por não possuir uma sólida tradição escultórica erudita, terá obras mais interessantes quando produzidas por artistas que não hierarquizam linguagens e dialogam diretamente com o desenho e a pintura, como já pontuado por Tadeu Chiarelli. Mas que, no entanto, se arriscam e ousam ao adentrar um campo que envolve a tradição e uma densa simbologia – a cerâmica, que carrega por si própria os materiais da terra.

Cerâmica de Paula Juchem

Paula Juchem, Xique-xique, 2020, Escultura em cerâmica, 67 x ø25cm

* Artista, curador e colaborador da Janaina Torres Galeria

Fontes:
AFONSO, M.C. Arqueologia Jê no Estado de São Paulo. R. Museu Arq. Etn., 27: 30-43, 2016.
CHIARELLI, Tadeu. Amilcar de Castro: corte e dobra. S. Paulo: Cosac & Naif, 2003.
GARCIA, Simone. A cerâmica de Pablo Picasso: a antiguidade mediterrânea revisitada, S. Paulo, 2018. Dipsonível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/157173

Veja mais:

Da Natureza das Coisas (página da exposição)
Paula Juchem (página da artista)
Andrey Zignnatto (página do artista)

 

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